domingo, janeiro 30, 2005

No tempo da brilhantina

Tudo o via embaçava
Só o nosso olhar brilhava
Da mais profunda tristeza
Quanta a conta acumulada
Na mercearia da esquina!
Se brilhava na cabeça
O fulgor de uma ideia
Derrubavam-nos a porta
Arrastavam-nos à força
Para a prisão e a tortura.
Por fora o que brilhava
Era a glória abestalhada
“Como vai V.ª Excelência?”,
E o tolo e o parolo
vergavam-se um ao outro
Que o povo botava um lenço
De lágrimas ensopado
Para acenar ao filho
No cais de onde o navio
O levava para a guerra.
Que guerra? Nem o sabia! Soía
Que uns terroristas nas matas,
Queriam as tais colónias
Antigas, que tresandavam.
Nos tempos da brilhantina
Eu de vestido engendrado
De outros postos de lado
Cozinhava, limpava, cozia
E depois de espancada
Com o cinturão do polícia
Ia adoçar limonada
A que vinha habituada
De Angola, a minha madrasta.
Quando enfim me recolhia
Mergulhava na leitura
Embrenhava-me na escrita
Que a muito custo passava
Até ao norte de África
Onde pela uma hora
Manuel Alegre dizia
"Aqui, Voz da Liberdade!"
E os horrores desvendava
E as mentiras mostrava
E os nossos versos lia...

Anos dourados havia,
Para a nação impostora
Retratada em cada sala
Um à esquerda, outro à direita
Com a cara inexpressiva.
No meio um Cristo pregado
Mantinha-se angustiando
Ao ver-nos sofrer tal vida!


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